Os Filhos dos Dias (Antígona, 2020)

Os Filhos dos Dias, de Eduardo Galeano.

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Tradução de Guilherme Pires, revisão de Madalena Caramona. Edição da Antígona.

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«19 de Novembro
O Musgo e a Pedra
 
Ao amanhecer deste dia de 1915, Joe Hill foi fuzilado em Salt Lake City.
Este forasteiro agitador, que mudara duas vezes de nome e mil vezes de ofício e de morada, tinha cometido as canções que acompanhavam as greves operárias dos Estados Unidos.
Nesta última noite, pediu aos seus companheiros que não perdessem tempo a chorar por ele:
“A minha última vontade é fácil de exprimir,
porque não deixo herança para repartir:
a minha liberdade é tudo o que deixo.
O musgo não nasce quando rola o seixo.”»
 
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«22 de Novembro
Dia da Música
 
Segundo contam os memoriosos, noutros tempos o sol foi dono da música, até que o vento lha roubou.
Desde então, para consolar o sol, os pássaros oferecem‑lhe concertos ao princípio e ao fim de cada dia.
Mas os alados cantores não conseguem competir com os rugidos e os gemidos dos motores que governam as grandes cidades. Já pouco ou nada se ouve do canto dos pássaros. Rasgam o peito em vão na tentativa de se fazerem ouvir, e o esforço para soar cada vez mais alto arruína os seus trinados.
E as fêmeas já não reconhecem os seus machos. Eles chamam‑nas, virtuosos tenores, irresistíveis barítonos, mas no barulho urbano não é possível distinguir quem é quem, e elas acabam por aceitar o abrigo de asas desconhecidas.»