A Tempestade (Elsinore, 2018)

A Tempestade, de Marina Perezagua.

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Tradução do espanhol por Guilherme Pires. Revisão de Tiago Marques. Edição da Elsinore.

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«Não sei se durante os primeiros trajetos ouviste um sibilo de exaustão que saía da minha garganta. A pouco e pouco, a prática fortaleceu-me e comecei a apreciar o prazer do cego, apercebendo-me de sensações que não teria reconhecido com os olhos abertos.

Senti, no meu corpo, o corpo do cavalo; cada movimento, cada subida e descida das suas ilhargas. A ligação era tão intensa que quando o vapor de água que eu exalava humedecia os pelos mais próximos dos meus lábios, as sobrancelhas, eu percebia que as diminutas gotas que nasciam no meu rosto iriam morrer feitas neve sobre a pelugem do animal, de um negro imaculado, crinas espessas e um abundante pelo que lhe cobria as quartelas, como sinos. As mudanças de ritmo na sua respiração permitiam-me antecipar os relinchos. E, conquanto não o visse, sabia que a sua respiração quente condensava o ar gelado ao mesmo tempo que o meu ar turvava os vidros. O Misha e eu éramos a cabeça e a cauda de um cavalo a vapor. E, entre nós dois, tu, minha irmã, estômago escondido, digestão secreta, úlcera de leis infectas que — eu apenas o pressentia, mas estava certa disso — tu quebravas.

À nossa passagem, o fogo violava a neve e os telhados. O fogo, se é grande, vê-se até com os olhos fechados. A luz das chamas atravessava a fina pele das minhas pálpebras e, a partir do momento em que entrávamos na cidade, eu via, transluzidos, os fulgores de madeira incendiada. Nesses brevíssimos intervalos em que eu imaginava que tu atiravas tochas e incendiavas casas, a porta da carruagem continuava a abrir-se e a fechar-se.»