O Jogo de Olhares, de Elias Canetti (terceiro e último volume da autobiografia do autor)
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Revisão de tradução por Madalena Caramona e Guilherme Pires. Tradução de Maria Hermínia Brandão. Edição da Cavalo de Ferro.
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«A súplica não teve fim; eu ouvia aquela voz, que não reconhecia, alta e límpida, como a de um evangelista; não deveria ouvi-la, pois ele queria ficar a sós, mas eu ouvia-a, preocupado, sem saber se devia deixá-lo sozinho, como era seu desejo; examinei-a longamente antes de ter tomado uma decisão — permaneceu no meu ouvido durante todos estes anos. Como se examina e avalia uma voz? O que se mede? Como é que se mede o que nos pode dar confiança? Ouve-se o seu discurso em surdina para a morta, a quem jamais abandonará, até que possa segui-la; fala com ela como se ainda tivesse em si toda a força para a reter, e essa força é pertença dela, e ele dá-lha, ela tem de a sentir. A voz dele soa como se cantasse baixinho para ela, um canto que não serve para lhe dizer algo sobre si, um canto que não é um lamento, que serve apenas para falar sobre ela, pois só ela sofreu, só ela tem direito a lamentar-se, e ele, porém, consola-a, suplica, promete-lhe a cada momento que ela está ali, ela apenas, a sós com ele e ninguém mais; todos a incomodam, por isso ele quer que eu o deixe sozinho com ela, por dois ou três dias, e embora esteja enterrada, ela jaz ali, deitada na cama onde esteve doente, e através das palavras ele fá-la regressar, e ela não pode abandoná-lo.»